A vez da terapia genética
O futuro chegou. Esqueçam os carros voadores dos Jetsons – eles aparecerão em breve, certamente dispensando os uber-motoristas. Refiro-me aqui à terapia genética, que já começou sua revolução na medicina. O apito inicial dessa partida ocorreu há algum tempo, mas pouca gente se deu conta, talvez porque a grande imprensa sempre priorize o ramerrão da política nacional, em que até o entupimento da uretra do presidente vira manchete. Há poucos dias, foi publicado um estudo a respeito de um estupefaciente – vale o adjetivo – tratamento (cura?) de uma doença grave e emblemática, com grande lastro histórico: a hemofilia.
A hemofilia é uma doença hereditária e incurável (até semana passada ao menos) em que o indivíduo nasce com uma deficiência na produção de um fator de coagulação. Isso leva a constante risco de hemorragias, que podem ser fatais, quando ocorrem no cérebro, ou debilitantes, quando atingem as articulações. Décadas atrás, uma vida condenada a sofrimentos constantes, como as que tiveram alguns dos descendentes da rainha Vitória, aquela mesma do recente filme “Victoria e Abdul”.
O que engenhosos pesquisadores conseguiram agora foi domesticar um tipo de vírus, desses que causam um resfriado comum, grudando nele uma caixa de ferramentas para consertar a parte do genoma defeituoso, responsável pela produção do tal fator de coagulação. Por meio de uma única picada, injeta-se o vírus na corrente sanguínea, e ele faz o serviço. No estudo em questão, sete pacientes com a forma grave da doença foram agraciados com esse vírus camarada e, no acompanhamento de um ano, deram adeus a hemorragias e transfusões. Há dúvidas pendentes quanto ao prazo de validade, possíveis efeitos inesperados e, claro, o soldo do exército viral. Mas a avenida que se abre com essa incipiente modalidade de tratamento deve alterar os rumos da medicina nas suas diversas áreas.
Na cardiologia, no campo das arritmias, um grupo italiano já conseguiu adestrar e equipar outro vírus para tratamento de uma doença tão rara quanto mortal – a taquicardia ventricular catecolaminérgica -, em que uma mutação causa um defeito sutil numa estrutura dentro das células cardíacas, expondo crianças e jovens ao risco de morte súbita. Em breve, serão feitos os primeiros testes em humanos.
Esses exemplos ilustram bem o potencial da terapia genética, que já escapou do mundo da ficção científica e estará circulando entre nós em pouco tempo, livrando a humanidade de parte expressiva das doenças conhecidas, que devem se juntar à varíola no cemitério dos males extintos.
Sei que, nessa época do ano, as pessoas gostam de receber mensagens de esperança. Nesse ponto, sinto frustrar minha meia-dúzia de leitores, que insistiram até aqui. A terapia genética já passou da fase de esperança. É uma realidade fervilhante melhorando a vida de pessoas que nasceram com algum defeito de fábrica.